Sunday, October 02, 2005

Chacinas

Crimes Policiais de Execução Sumária no Rio de Janeiro:
um estudo de caso sobre a chacina de Vigário Geral, da Candelária e de Acari

Joana D`Arc Fernandes Ferraz
Doutora em Ciências Sociais

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

Para citar os textos publicados neste site siga o seguinte modelo

SOBRENOME DO AUTOR, Nome do Autor. Título do artigo em itálico [on-line] In: OS URBANITAS - Revista de Antropologia Urbana Ano 2, vol.2, n.1. Disponível via WWW no URL http://www.osurbanitas.org/osurbanitas2/nomedoarquivo.html. Internet, 2005. Capturado em dia/mês/ano

[O URL é o endereço que aparece na janela Endereço do browser quando você está na página inicial do artigo].



Os arquivos publicados em OS URBANITAS - Revista de Antropologia Urbana são do tipo copyleft. Isso significa que você tem autorização para usar seu conteúdo, gratuitamente, desde que cite integralmente seus autores e o site como fontes da informação.






Introdução

Ao longo desses 11 anos a violência policial intensificou-se, embora tenha mudado sua forma de atuação. Quase não se produzem mais chacinas, porém, diariamente os policiais matam um número enorme de pessoas, em “doses homeopáticas”, em diversos cantos da cidade. Em 1997, eram 300 as vítimas fatais de ações policiais no Rio de Janeiro; em 1998 passou para 397; em 2001, subiu para 597 e em 2003, foi para 1195. As áreas onde residem as populações de baixa renda, tais como favelas, conjuntos habitacionais para proletários e moradias irregulares, concentram um maior número de vítimas de ações policiais. Em sua maioria, essas vítimas são os jovens, entre 18 e 24 anos, pobres e negros, segundo o relatório da Unesco, de 2003.




As chacinas de Vigário Geral, da Candelária e dos meninos de Acari comprovam essa estatística: o maior número de vítimas foi a de jovens negros, do sexo masculino, entre 18 e 24 anos. A concentração da violência policial sobre as populações pobres e sobre os seus locais de moradia não é um ato isolado de significados. Desde de que as favelas surgiram, o Estado incumbiu aos agentes da lei - os policiais – a tarefa de reprimir as populações, seja derrubando os barracos, nas remoções, seja, na busca de criminosos, e mais tarde, já na década de 80, na caça aos traficantes e às drogas. Portanto, a função da polícia para essa parcela pobre e habitante “ilegal” da cidade, não é a de garantidora dos direitos da população, mas de repressora, em nome do Estado.





Os Três Casos


É nesse contexto que se situam os três casos que abalaram a sociedade brasileira, largamente noticiados na imprensa nacional e internacional, na década de noventa do século passado, quais sejam, o seqüestro dos meninos de Acari, o massacre da Candelária e a chacina de Vigário geral.




Seqüestro dos meninos de Acari:


Iniciaremos nossa descrição dos fatos de acordo com a ordem cronológica dos acontecimentos. O primeiro crime ocorreu em Acari, em 26 de julho de 1990, envolvendo onze pessoas, cinco dos quais com menos de 18 anos. A manchete do jornal popular ‘O Povo’ no dia seguinte ao seqüestro estampava: “DEZ PESSOAS SEQUESTRADAS EM MAGÉ”. E continua:




“Moças e rapazes, residentes na Favela de Acari, foram passar o fim de semana na localidade de Suruí, em Magé. Dormiam quando a casa foi invadida por um grupo de mascarados fortemente armados, que exigiam a entrega de um saco com jóias e dinheiro. Velha escapa e conta a história.” (O Povo, 27/07/1990)


Logo embaixo da reportagem, havia a foto de sete das dez vítimas. No dia seguinte, no mesmo jornal, havia a informação de que os seqüestrados foram vítimas de um grupo de extermínio.



O Relatório da Anistia Internacional (2003) confirmou que os seqüestradores haviam sido identificados pelo setor de inteligência da Polícia Militar como sendo policiais militares do 9º Batalhão da Polícia Militar, em Rocha Miranda/ RJ, e como detetives do Departamento de Roubo de Carga da 39ª Delegacia de Pavuna/ RJ. Segundo esse relatório, a causa do seqüestro foi vingança destes policiais pelo fato de três destes seqüestrados, envolvidos com roubos de cargas, não mais aceitarem dividir o roubo com estes policiais e por isso estavam fugindo da polícia, os delinqüentes que foram seqüestrados são: o Lula, o Mói e o Walace.





O Processo



Paralelamente, o Serviço de Inteligência e Informações da Polícia Militar, a P-2, na época comandada pelo tenente-coronel Walmir Alves Brun, fez um relatório divulgando o nome de todos os policiais civis e militares envolvidos no seqüestro, extorsão e desaparecimento dos 11. Houve, então um ritual jurídico-policial de identificação dos acusados, na sede da Corregedoria Geral de Polícia Civil e Militar e cada instituição cuidaria de seu pessoal.




Segundo informa Carlos Nobre (1994) o relatório do tenente-coronel Brun foi bombardeado pelo tenente-coronel Emir Laranjeira, que na época do seqüestro era o chefe do 9º BPM (de Rocha Miranda) e mais tarde foi acusado de pertencer ao grupo de extermínio Cavalos Corredores, envolvido com a chacina de Vigário Geral, em agosto de 1993. No entanto, no caso de Acari, não houve uma investigação séria das provas e na ausência de provas e dos corpos, o inquérito foi arquivado pelo Ministério Público. Como os corpos ainda não foram encontrados, não há processo. E por isso também não se fala em indenização.






Reflexos



As mães de Acari procuraram os seus filhos em mais de cinqüenta lugares em Magé. Não faltaram pressões populares nas ruas, o apoio dos sobreviventes de outros crimes e dos parentes de outras vítimas. Essas mães querem enterrar os corpos dos filhos. Elas relataram que “os policiais eram burros, porque se elas tivessem deixado aparecer os corpos, elas os teriam enterrado e estariam mais calmas e não incomodariam tanto.”




O jornalista Carlos Nobre (1994), compara a luta destas mães com as das “mães da Plaza de Mayo, mulheres argentinas, que revoltadas com o desaparecimento de seus filhos pelo Regime Militar daquele país, fazem manifestações em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino, exigindo que os militares dessem conta dos filhos desaparecidos durante la guerra súcia (guerra suja).





O Massacre dos Meninos da Candelária
No dia 23 de julho de 1993 um grupo de homens encapuzados atirou contra uns 50 menores de rua que dormiam na calçada da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. Sete crianças e um jovem adulto morreram. Segundo dados da Anistia Internacional (2003), quatro meninos morreram na hora, um quinto foi morto enquanto fugia correndo. Três outros colocados dentro de um carro e dois deles, mortos a tiros nos jardins do Aterro do Flamengo, perto dali. Um jovem adulto morreu em virtude dos ferimentos quatro dias depois. Outro jovem adulto, Wagner dos Santos, que havia sido dado como morto no Aterro do Flamengo, sobreviveu a um tiro no rosto.





O Processo



Com base nas acusações dos sobreviventes, quatro homens foram acusados: três eram policiais militares e um civil. Imediatamente iniciaram-se as investigações. No entanto, a ausência de proteção para as testemunhas fez com que várias crianças sofressem ameaças constantes. Em 1994, Wagner dos Santos, um dos sobreviventes, sofreu um novo atentado; atiraram quatro vezes contra ele, tentando impedi-lo de testemunhar. Em outubro de 1995, Wagner identificou por fotografias quatro outros policiais suspeitos de envolvimento no massacre. Em 1996 foram emitidos mandados de prisão para esses quatro homens. Três foram levados sob custódia e um quarto policial confessou a sua participação no massacre.




Em 1994, um dos policiais envolvidos foi morto a tiros por membros da unidade anti-seqüestro da Polícia Civil. As declarações, no II Tribunal do Júri, dos outros acusados atribuíam a maior parte da responsabilidade do crime a este ex-policial morto. E inocentaram cinco policiais.




Até junho de 1997 foram realizados três julgamentos, que resultaram em condenação de dois policiais militares; ambos confessaram o seu envolvimento. Os dois policiais militares e um civil, acusados logo depois do massacre, foram absolvidos em dezembro de 1996. Dois outros policiais militares, um dos quais havia sido identificado por Wagner dos Santos como sendo o que lhe deu o tiro no rosto, foram soltos, sem acusações, em maio de 1996.




Outra falha do processo foi o fato de os envolvidos alegarem que havia cinco pessoas e somente um carro envolvido no crime, enquanto os sobreviventes, que foram testemunhas no processo, afirmaram desde o início das investigações que havia dois carros e oito pessoas.





Reflexos



Segundo o relatório da Anistia Internacional (2003), das 72 crianças que viviam na Praça da Igreja da Candelária, em 1993 (época do massacre), 39 morreram vitimas da violência nas ruas da cidade. O caso mais chocante foi o caso do seqüestrador do Ônibus 174, Sandro do Nascimento (um dos sobreviventes da chacina da Candelária). Na tentativa de assalto, Sandro manteve várias pessoas como reféns dentro de um ônibus. Durante as negociações com a polícia ele mencionou várias vezes o massacre da Candelária e a chacina de Vigário Geral. Depois de horas de negociações quando tudo parecia se resolver Sandro saiu com uma refém (Geisa) como escudo. Um policial, a fim de acabar com o impasse, atirou em Sandro e errou o tiro; foi quando Sandro imediatamente atirou em Geisa. Mais tarde, a autópsia revelou que Geisa foi morta com dois tiros: o de Sandro e um do policial. Os policiais colocaram Sandro na viatura da polícia, a fim de levá-lo para a delegacia, mas ele morreu por asfixia no caminho. O júri aceitou o argumento do advogado de defesa de que Sandro asfixiara-se a si mesmo e os policiais foram absolvidos, em dezembro de 2002.






A Chacina de Vigário Geral


O terceiro grande crime de execução sumária ocorrido no Rio de Janeiro aconteceu em 29 de agosto de 1993 e deixou 21 pessoas mortas, dentre elas uma menor de 15 anos. A chacina de Vigário foi a que teve o maior número de vítimas no Rio de Janeiro e uma das maiores que a sociedade brasileira sofreu na década de 90, sendo superada apenas pela do Carandiru, um presídio de São Paulo, em que morreram 111 pessoas.




Vigário Geral é uma favela com um dos maiores índices de concentração de pobreza da cidade do Rio de Janeiro, apresentando e moradias em precárias condições. Lá há muita miséria e falta saneamento básico. Nesta favela moram cerca de 30 mil pessoas. A favela é paupérrima, nenhuma rua é asfaltada, existem muitos barracos ainda de madeira.




A chacina ocorreu num domingo, às 23 horas, dia de um jogo do Brasil com a Bolívia (eliminatórias da Copa do Mundo) e as pessoas estavam nas ruas, quando algumas dezenas de homens encapuzados entraram na favela atirando, durante quase duas horas. Segundo depoimento dos moradores, “eles mataram todos que estavam de pé nas ruas” .




Pessoas morreram segurando a carteira de identidade, outras ouvindo o radinho de pilha e outras, ainda, com a marmita na mão. Somente numa família morreram 8 pessoas dentro de casa.




A causa da chacina, segundo depoimento dos moradores e na imprensa foi uma vingança dos policiais de uma facção paramilitar Cavalos Corredores em represália à morte de quatro policiais, pertencentes a esta facção e que morreram numa praça próxima à favela no dia anterior, vítimas de uma emboscada dos traficantes da favela, que não queriam mais dividir o lucro do tráfico de drogas com estes policiais.





O Processo



O julgamento da chacina ainda está ocorrendo. Dos 33 acusados no processo de Vigário Geral I, levados a julgamento a partir de 1997, 21 foram absolvidos (dentre eles os 19 que elaboraram a fita, conforme explicaremos), alguns deles estão na ativa da polícia. Cinco foram condenados, um fugiu e 4 continuaram presos. Quatro morreram e dois estão foragidos. Todo réu condenado, em primeira instância, tem direito a um segundo julgamento, caso o julgamento do Tribunal do Júri seja de 4 por 3, ou seja, se dos 7 jurados do Tribunal do Júri, 4 jurados votarem a favor da condenação e 3 contra, o réu tem direito a um novo julgamento. Todos os condenados no processo de Vigário Geral I tiveram direito a um novo julgamento, e estão sendo julgado novamente, em 2003 e 2004. Dos 19 acusados do processo de Vigário Geral II, 10 foram absolvidos, em 26 de julho de 2003, 1 morreu, 7 antes de irem para o julgamento no Tribunal do Júri, o juiz entendeu que não havia prova suficiente para levá-los a julgamento e os impronunciou.





A Fita



Em 1995, 19 policiais que estavam em prisão preventiva gravaram declarações afirmando que foram outros 19 policiais que fizeram a operação e citaram os nomes dos policiais. Esta fita foi o motivo da liberdade condicional e posterior absolvição destes policiais. Imediatamente os acusados na fita foram presos. O motivo da fita gerou um novo processo conhecido como Vigário Geral II.




Segundo o Relatório da Anistia Internacional (2003), nenhuma das condenações acima é definitiva e, de acordo com que foi publicado no jornal O Globo, em 18 de julho de 2003, apenas dois dos seis policiais condenados ainda estavam na prisão aguardando as audiências de apelação. Os outros quatros foram libertados porque expirou o período estabelecido para as suas audiências de apelação.
O artigo também diz que a maioria dos policiais militares suspensos para aguardar as investigações em 1993 foram reintegrados à força policial.




Em agosto de 2003 os acusados na fita (Processo de Vigário Geral II) foram absolvidos por ter sido comprovada a falsidade das declarações contidas na fita. Entraram com ação indenizatória pelo tempo que ficaram presos injustamente e já estão recebendo a indenização. A advogada das vítimas Cristina Leonardo (assistente de acusação) e os parentes afirmaram em entrevista , que tentaram um recurso na 4ª Câmara Criminal, a fim de submeter a um novo julgamento, que ainda não ocorreu. Ou seja, o que se conseguiu até agora foi a libertação dos que foram acusados, injustamente, pela fita, mas os policiais que foram libertados por terem acusados os da fita, estão soltos.





Indenizações



Como já afirmado, no seqüestro dos meninos de Acari não houve processo e nem indenização. Somente Wagner dos Santos, sobrevivente do massacre da Candelária, recebeu uma indenização de R$10.000,00. Foi acordado com o governo de Anthony Garotinho, governador do Estado do RJ de (1999-2002), uma pensão mensal para os sobreviventes e parentes das vítimas da Candelária e de Vigário Geral, no valor de até três salários mínimos. No entanto, essa pensão não é definitiva e pode ser deduzida de qualquer indenização futura.




O Paradoxo entre Violência Policial e Direitos Humanos



Os problemas da violência policial e da construção do sistema de justiça no Brasil, devem ser pensados de forma conjugada. Existe uma construção hierárquica na sociedade brasileira, que permite a estabilização de um sistema de injustiças e iniqüidades, em conjunção com as práticas sociais construídas diariamente e aceitas como “normais”, que colaboram para a conformação dessas injustiças.




Em função dessa duplicidade, temos a formação de discursos e práticas que refletem essa contradição. O primeiro policial condenado da chacina da Vigário Geral desabafou no final do seu julgamento:




“A minha culpa é a mesma que as das vítimas. Elas foram mortas porque eram pobres e faveladas. Se morassem em condomínio fechado não teriam sido chacinadas. Eu estou sendo acusado por ser policial. A Polícia Militar faz o trabalho sujo do estado. A justiça que o povo pede nas ruas é diferente da justiça dos tribunais“. (Jornal O Dia, 25/04/1997)


Os sobreviventes e parentes das vítimas também lutam por justiça, vão a todos os julgamentos, mas têm que sair cedo dos julgamentos, pois sabem que não podem chagar na favela tarde da noite, por ordem dos que mandam na favela. A luta por justiça, portanto, acaba nos tribunais, não se estende para a vida.




Os meios de comunicação, em particular os jornais, contraditoriamente, ao mesmo tempo em que tornam públicas falas como essas dos policiais, também apresentam os argumentos pró-violência policial. Não fazem nenhuma crítica aos seus argumentos, permitindo que se justifique o horror que essas populações viveram como algo inevitável.




Se observarmos as informações jornalísticas e as entrevistas que fizemos com os advogados de defesa dos policiais, em quase 60% dos argumentos, tanto dos advogados quanto dos meios de comunicação, está implícita essa assertiva. As variações sobre esses argumentos gravitam em torno de: policiais ganham pouco, isso leva à corrupção de um número significativo de pessoas da corporação; por estarem muito próximos da criminalidade, os policiais estão mais vulneráveis à delinqüência; a maioria da população residente nas favelas tem uma ligação direta ou indireta com a marginalidade e a droga, pois, o próprio local de moradia é marginal à cidade; a violência faz parte daquele grupo social específico (despojados de recursos materiais), isso os leva a uma convivência mais próxima com a morte.




Esses discursos acidentais e fragmentados dos meios de comunicação sobre a violência, sobre as drogas e sobre a criminalidade camuflam uma observação mais atenta sobre a desigualdade social, sobre o autoritarismo das instituições na nossa democracia restrita, favorecendo uma visão particularizada do espaço público e do acesso aos bens públicos. Assim, ocorre uma invisibilidade dos temas fundamentais que deveriam ser objeto de debate na sociedade, tais como a justiça, os direitos humanos, as desigualdades sociais e a efetivação da democracia, enquanto outros como a violência aparecem como princípio norteador dos problemas sociais.




O sistema judiciário, vindo ao encontro dessa percepção fragmentada e preconceituosa promovida pelos meios de comunicação, colaboram para a manutenção desse sistema de iniqüidades e injustiças, como veremos a seguir.




Do fato ocorrido (crime) até se chegar a uma ação (processo) existem 3 fases, que se subdividem. A primeira parte é a inquisitorial, divide-se em 3 etapas:



1º) o fato (crime) execução sumária;
2º) registro da ocorrência;
3º) inquérito ou investigação;


Como afirma Roberto Kant de Lima,




“O Código de Processo Penal, regula de três formas a produção da verdade: a policial, a judicial e a do Tribunal do Júri. Tais formas encontram-se no Código, hierarquizadas explicitamente: no inquérito policial, o procedimento da polícia judiciária, oficialmente, é ‘administrativo’ e, por isso, inquisitorial, não se regendo pelo princípio do contraditório; o procedimento judicial aplica-se à maioria dos crimes e inicia-se, obrigatoriamente, quando há indícios suficientes que um delito foi cometido (…) e finalmente o julgamento pelo Tribunal do Júri é um procedimento que se aplica aos crimes intencionais contra a vida e se inicia por uma sentença judicial proferida por um juiz (pronúncia), após a realização da produção de informações, indícios e provas, durante o inquérito policial e a instrução judicial regida pelo contraditório e a ampla defesa que exige a presença do réu e que termina pelo veredito dos jurados“.( LIMA, Roberto Kant de. 2003:21 Grifo nosso)


A primeira fase é realizada exclusivamente pela polícia judiciária, no caso do Brasil, a Polícia Civil, que, embora seja um órgão do Poder do Executivo, tem uma delegação Judiciária. Essa fase, denominada inquisitória, não tem o contraditório e nem a ampla defesa, uma vez que não há acusação, somente há apuração de indícios de autoria e a comprovação da materialidade do fato ilícito e as provas, como: listar os envolvidos, as testemunhas, o recolhimento das armas (que serão encaminhadas para perícia junto ao Instituto Carlos Éboli), que deverá ser concluída em um prazo de 30 dias , os vestígios, em geral deixados no local do crime, cabendo a sua tipificação ao membro do Ministério Público em fase posterior, o oferecimento da Denúncia . Essa etapa é muito importante, pois através dela se fará o embasamento para a peça inicial de acusação. Ela será a base da denúncia oferecida pelo Ministério Público.





Após essa fase, o inquérito é encaminhado ao Ministério Público, entrando para a segunda fase do processo – a acusatorial – feita pelo Ministério Público. Este, ao receber os autos do inquérito da autoridade policial, poderá adotar três providências:




a) Requisitar à autoridade policial – delegado -, no prazo que determinar, novas diligências investigatórias imprescindíveis ao oferecimento da denúncia quando o fato for de difícil elucidação;
b) Requerer ao Juiz o arquivamento dos autos do inquérito em face da presença de algumas hipóteses do art. 43 do Código de Processo Penal, visto o contrário sensu, ou seja, não há provas e nem precisa de novas investigações;

c) O Ministério Público, na figura do promotor, vai estudar o inquérito investigativo, fazer a denúncia, e envia-la para o juiz, a fim de que esse faça o seu julgamento sobre o processo.




Na terceira e última fase, o juiz avalia os autos do processo e pode adotar um das seguintes medidas:




a) Se entender que não tem provas para levar para o Tribunal do Júri, pode parar com o processo ali e absolver o réu;
b) Caso ache que não tem provas suficientes, mas que o Ministério Público pode buscar novas provas, impronuncia e arquiva o processo, libertando o réu, até que Ministério Público novamente ofereça provas;

c) Se o juiz entender que há provas, pronuncia o réu e leva para o julgamento no Tribunal do Júri. Em seguida,



7º) vai a julgamento. Cabe ao promotor do Tribunal do Júri, no qual tramita o processo, argüir a acusação. Nestes crimes referidos é o Tribunal do Júri quem julga, a partir da resposta a uns quesitos já anteriormente elaborados para o julgamento.



No Brasil, todo crime doloso contra a vida tem que ser julgado pelo Tribunal do Júri (teoricamente um tribunal composto de pessoas leigas, escolhidas na própria sociedade). Esta medida - de não permitir que o julgamento seja efetuado por juízes profissionais – tem como objetivo tornar mais justo o julgamento. Considerando-se que nestes casos a sociedade está mais apta a julgar do que qualquer outro profissional.




8º) Finalmente, será dada a sentença: absolvição ou condenação.




As Incoerências na Fase Investigatória e Acusatória



Partindo dessa estrutura de funcionamento, várias incoerências são constatadas. O primeiro conjunto de incoerências ocorre na própria instauração do inquérito. Sendo a própria polícia quem faz a ocorrência, muitas vezes estas ocorrências nem se transformam em inquérito, parando ali mesmo na delegacia; Segundo os dados da Anistia Internacional (2003), de 2,7 milhões de boletins de ocorrência por ano no Estado de São Paulo, somente 10 a 11 por cento viram inquéritos. É a polícia quem decide o que deve e o que não deve e como deve ser averiguado. Há uma tendência de não se investigarem as ações ilícitas envolvendo policiais.




Quando se abre a investigação que envolve a participação de policiais, muitas vezes a investigação recai sobre a vida da vítima e não do policial acusado do delito. Outros casos de crimes cometidos pela polícia, em vez de serem tipificados como homicídio, são tipificados como “resistência seguida de morte”, e por isso, os processos não vão para o Tribunal do Júri, indo para as varas criminais comuns.
No processo de investigação e coleta de provas quando não se contrata advogados que acelerem e pressionem a investigação, há tendência a morosidade e até mesmo o sumiço de processos ou de provas.




O Ministério Público recebe o processo já investigado, ou seja, distorcido pelo aparelho policial, ocorrendo muitas das incoerências, relatadas a seguir.




O inquérito muitas vezes é mal feito, mal instruído e com falta de provas convincentes para permitir a avaliação de mérito, devendo ser arquivado pelo juiz a pedido da promotoria. Segundo infere o Relatório da Anistia Internacional (2003) sobre a pesquisa de Ignácio Cano (1998) que analisou o andamento de casos de mortes de civis por policiais militares na Auditoria de Justiça Militar do Rio de Janeiro, dos 301 casos encontrados, 295 foram arquivados a pedido da promotoria e outros seis que foram a julgamento acabaram em absolvição a pedido dos próprios promotores, mesmo com provas de tiro à queima roupa ou outros fortes indicadores de execução. O que demonstra omissão do Ministério Público.




Tendo passado por tudo isso, a denúncia transforma-se em ação, sendo encaminhada para o julgamento. Este tipo específico de crime como foi o de Vigário Geral e o da Candelária (homicídio doloso contra a vida da pessoa) tem que ser julgado pelo Tribunal do Júri, pelas razões já expostas.





A Constituição do Tribunal do Júri



No Tribunal do Júri é a sociedade quem decide se absolve ou condena um réu. Teoricamente, essas pessoas são selecionadas no meio social. O processo normal de seleção seria a inscrição voluntária, feita uma vez por ano.




No Brasil, a prática mais comum é a do juiz fazer uma lista de pessoas de sua confiança, normalmente são funcionários públicos, que ganham dias de trabalho, aposentados e ou pessoas que espontaneamente gostam de participar, estas não têm ganho material sobre a participação. Nos Estados Unidos, por exemplo, as pessoas que compõem o Tribunal do Júri são selecionadas aleatoriamente, como ocorre aqui na convocação para o trabalho no Tribunal Regional Eleitoral, em dias de eleição.




O fato de, no Brasil, a seleção se feita pelos juízes, leva a um gravíssimo problema: estas pessoas se revezam no Tribunal, ganham a simpatia dos juízes, dos promotores, o que acaba gerando um ciclo vicioso, onde as mesmas pessoas retornam sempre para os mesmos tribunais, e acabam votando segundo o entendimento dos juízes e promotores. Eles são tão conhecidos nos tribunais, que chegam a ser apelidados de “ratos de tribunal”;




Neste crime que estamos analisando, todas as absolvições foram feitas pelo Tribunal do Júri. Observamos que a forma de julgar dessas pessoas reflete uma percepção social também bastante hierarquizada da sociedade, pois o seu voto é fruto da prévia avaliação dos juízes ou dos apelos populares de punição.





Incoerências esta Fase
Em geral, as incoerências dos processos são inúmeras; destacaremos algumas consideradas gritantes:




Todos os inquéritos investigativos devem ser feitos pela Polícia Civil; nestes casos, havia policiais civis e militares envolvidos, portanto, a investigação não ocorreu de forma imparcial, pois a “ética profissional” é um forte argumento para a proteção do réu ou para não manchar o nome da corporação. No entanto, depois da Lei 9099/95 que instituiu o Juizado Especial Criminal, para os delitos de menor poder ofensivo, é concedido às partes, “agressor e ofendido, a possibilidade de uma aplicação imediata de pena, segundo a lei, alternativa, não privativa de liberdade” . (Juizados Especiais Criminais, 2003:61)




Em média existe um tempo de quatro anos entre a entrada do processo e a sentença. Entre a entrada do processo e a sua execução, o tempo médio é de 10 anos, conforme argumenta Andrei Koerner (2002:115 Reflexões sobre Justiça e violência); Sérgio Adorno afirma que o aparelho judiciário "leva em média de cinco a dez anos para expedir uma sentença condenatória" (Adorno, 1991:69). O que justifica o nosso argumento da impunidade é que os processos estudados têm onze anos (Vigário Geral e Candelária) e não há previsão de quando os acusados serão sentenciados, o de Acari ainda é pior, pois, sequer virou processo.




Muitos policiais acusados da chacina estão na ativa ou foram reincorporados em funções administrativas. Há fortes denúncias de parentes e sobreviventes de que estes réus usam o aparato militar para pressioná-los e intimidá-los. Houve casos de mortes, como o da Edméia (mãe de Acari) que foi assassinada antes do seu depoimento, do Wagner dos Santos (que levou quatro tiros) também antes do seu depoimento, mas que conseguiu sobreviver e o da Gorda (sobrevivente da Candelária), que foi morta um mês antes seu depoimento de apelação de absolvição de um dos réus; no processo de Vigário Geral, muitos depoimentos não foram considerados, o que ocasionou absolvição indevida de muitos policiais.




A impunidade é tão estruturada que nem a repercussão internacional desses crimes pela imprensa, a pressão da Anistia Internacional durante todos esses anos, fez com que houvesse um maior rigor, tanto na investigação dos processos quanto nos seus julgamentos.




O termo impunidade é utilizado aqui em seu sentido sociológico, ou seja, consideramos impunidade os crimes cometidos e não punidos devidamente ou a morosidade da justiça no encaminhamento do processo, ou falhas jurídicas legais ou de funcionários (promotores, juízes etc.) durante o encaminhamento do processo.




Devemos, portanto, olhar mais profundamente sobre essas contradições. Essas bandeiras por justiça, cidadania, direitos humanos e democracia devem ter como suporte a luta contra as desigualdades sociais, pois, concordamos com Ellen M. Wood (2003), que o capitalismo é capaz de aceitar diversas bandeiras dos inferiores e até mesmo incorporá-las, sem que para isso precise remover as desigualdades sociais. E isso torna algumas lutas dos inferiores improfícuas, ainda que em curto prazo pareçam uma conquista.




Portanto, o discurso sobre a democracia, tem que passar efetivamente para a ampliação da democracia em todas as esferas do direito, desde um acesso digno aos bens materiais, à saúde, à educação, até a uma ampla e profunda discussão sobre a expansão da democracia em todas as instâncias da vida social, econômico-político-administrativa, e de uma efetiva participação de todos na vida democrática.




Para isso torna-se necessário que saibamos diferenciar a luta por justiça, da luta superficial por justiça, a luta pela defesa dos direitos humanos, da luta pelo direito de uns terem mais direitos humanos (ou serem mais humanos) que outros. Ou seja, nós, como sociedade, precisamos olhar profundamente a origem das nossas desigualdades, a fim de, tocando o dedo na ferida, sabermos efetivamente construir uma sociedade de cidadãos livres e iguais.




No entanto, olhando mais atentamente, o que observamos é que este discurso, ideologicamente construído por esse grupo, somente encontra espaço em nossa democracia porque esta, efetivamente, ainda não existe. O que vivemos como democracia ainda é uma democracia aparente, formal e subcidadã . José Murilo de Carvalho afirma que essa ausência de uma democracia efetiva em nossa sociedade permite a criação de




três tipos de cidadãos: o doutor, o crente e o macumbeiro. O doutor é o cidadão de primeira classe, titular dos direitos constitucionais, merecedor do respeito e da deferência dos agentes da lei. O crente vem em segundo lugar: pode ter alguns direitos violados, mas ainda merece algum respeito. Por fim, o macumbeiro: não tem direitos, nem pode ser considerado cidadão (Carvalho, 1999:276).


Assim, no discurso ideologicamente construído por esses grupos sociais que se amparam da ausência efetiva da democracia para justificar seus absurdos em nome dessa democracia formal, consideram estranhos os que lutam para uma efetiva democracia. Dessa forma, as “Mães da Praça de Maio”, na Argentina, eram chamadas de “loucas” no regime militar e mesmo depois da democracia formal que a Argentina vive; hoje, os movimentos das minorias na luta por seus espaços na sociedade sofrem grandes discriminações; a luta, por justiça, das vítimas e dos parentes das vítimas de Vigário Geral, Acari, Candelária, Carandiru, Nova Brasília, entre tantos outros, é encarada como sem sentido, pois todos os procedimentos formais possíveis para se fazer a “justiça” foram feitos: houve investigação, quando foi possível, abertura de um processo e julgamento dos acusados, com condenação e com absolvição.




Finalizando, percebe-se que essa lógica punitiva se reproduz no treinamento policial, na medida em que os próprios cânticos fazem alusão a uma atuação repressiva e discriminatória da polícia. No dia 24 do mês de setembro de 2003, um jornal de grande circulação nacional denunciou que o Bope (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar) entoando “um coro inusitado despertou a atenção de moradores de um condomínio de alto luxo, na zona sul do Rio de Janeiro”, com o seguinte refrão de treinamento:




“O interrogatório é muito fácil de fazer,
pega o favelado e dá porrada até doer.
O interrogatório é muito fácil de acabar
pega o bandido e dá porrada até matar.”



Bibliografia

ALVITO. Marcos. A honra de Acari. In: Cidadania e Violência. Org. Gilberto Velho e Marcos Alvito. UFRJ/FGV. RJ. 2000.
ALVITO. Marcos. As cores de Acari: uma favela carioca. FGV.RJ. 2001
BOBBIO. Norberto. A Era dos Direitos. Campus. RJ. 1992.
CALDEIRA, Tereza Pires do Rio. Cidade de Muros. Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. Edusp. SP. 2000.
CANO. Ignácio. Nós e Eles: Direitos Humanos, a Polícia e a Visão Dicotômica da Sociedade. In: Direitos Humanos Temas e Perspectivas. MAUAD, ABA, Ford Foundation. RJ. 2001.
CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados, 1999
FOUCAULT. Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. NAU PUC-RJ. RJ. 2003.
FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir. Vozes. Petrópolis. 1997.
KANT DE LIMA. Roberto. A Polícia na Cidade do Rio de Janeiro. Forense. RJ. 1995.
KANT DE LIMA. Roberto. Tradição Inquisitorial Brasileira. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Nº 10. Vol.4 Junho 1989.
KOERNER. Andrei. Judiciário, Controle Social e Acesso à Justiça. In: Reflexões sobre Justiça e Violência: o atendimento a familiares de vítimas de crimes fatais. ORG: Isaura de Mello Castanho e Oliveira, Graziela Acquaviva Pavez, Flá Schilling. EDUC, Imprensa Oficial do Estado. SP. 2002.
KUCINSKI. Bernardo. Mídia e Democracia no Brasil. In: Mídia e Tolerância: a ciência construindo caminhos de liberdade. Org: Margarida Maria Krohling Kunsch, Roseli Fischmann. Ed. USP. SP. 2002
MISSE, Michel. Malandros, Marginais e Vagabundos e a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado. IUPERJ.RJ. 1999.
NOBRE. Carlos. Mães de Acari. Uma história de luta contra a impunidade. Relume- Dumará. Rj. 1994.
ANISTIA INTERNACIONAL. Relatório. Rio de Janeiro 2003: Candelária e Vigário Geral, 10 anos depois. Anistia Internacional. AMR. 19/015/2003
VENTURA. Zuenir.Cidade Partida. Companhia das letras. SP. 1994.
VILLAVECES-IZQUIERDO. Santiago. A policia: Direitos Humanos em um espaço de contradições sociais. In: Direitos Humanos Temas e Perspectivas. MAUAD, ABA, Ford Foundation. RJ. 2001.
WACQUANT. Loïc. As Prisões da Miséria. Jorge Zahar. RJ.2001.
WACQUANT. Loïc. Os condenados da Cidade. Revan. Fase. RJ. 2001b
XAVIER. Juarez Tadeu de Paula e Xavier. Patrical Alves de Matos. A invenção e a Reinvenção do Estereótipo dos Afrodescendentes: o papel da ciência, dos cientistas e dos meios de comunicação na formação e articulação do discurso da intolerância. In: Mídia e Tolerância: a ciência construindo caminhos de liberdade. Org: Margarida Maria Krohling Kunsch, Roseli Fischmann. Ed. USP. SP. 2002

0 Comments:

Post a Comment

<< Home